quinta-feira, junho 26, 2008

"...onde as nuvens negras e a estrada se juntam..."


"Ela diz que quer partir sozinha para o deserto, onde as nuvens negras e a estrada se juntam, lá ao fundo, é ali que ela quer ir, a esse extremo sem limites. A estrada estende-se infinitamente e eleva-se onde céu e terra se juntam, os seus passos só têm de a levar por esta estrada deserta à sombra das nuvens. Quando chegar ao fim dessa estrada infinita, esta continuará e ela nunca deixará de avançar, de coração vazio. Teve a ideia de morrer, de pôr termo aos seus dias, mas para se suicidar ainda é necessário um pouco de entusiasmo, e ela nem sequer tem esse entusiasmo. Quando um homem põe termo à sua vida, é sempre por alguém ou por alguma coisa, ela, presentemente, chegou a um ponto em que não o faria nem por alguém nem por coisa alguma, já nem tem força para pôr termo a si própria, sofreu todas as humilhações, todos os sofrimentos, agora, o seu coração está naturalmente insensível".


Gao Xingjian: "A Montanha da Alma"

terça-feira, junho 17, 2008

Por entre sumo de amora cor de sangue, os gatos assustam-se!

Adormeceste em meus braços secos de vida. Desejei abraçar-te, contudo, perdi todos os meus cinco sentidos. Libertaste-me do teu ódio, e agora esvaio-me nos três litros e meio de sangue, que me alaga o cabelo, outrora castanho e ondulado. Não sinto a sua temperatura. Não distingo a cor daquele líquido e a sua textura também me é indiferente. Percorre-me uma linha pelo rosto, como se fosse uma lágrima a humedecer-me os lábios, que adoptam a cor vermelho baço. Já não sinto qualquer emoção. É mera coincidência esta alusão a uma lágrima que não sinto.

Morro pela primeira vez e, como tal, não sei reencarnar o teu corpo. És homem e eu fui mulher. Agora que sou espírito devo desabituar-me de todos os costumes femininos. Não domino o teu corpo, mas reino em teus sonhos. Quis que recordasses aquele dia em que me viste a correr desvairada e alegre atrás de um gato. Sempre me atraiu a sua independência e a capacidade de treparem árvores, muros e percorrerem telhados. Gostava de os ver ultrapassar obstáculos. Sentia-me feliz por eles e corria, esforçando-me por aprender o impulso que deveria dar aos meus quatro membros para, num ápice, trepar a uma amoreira. Lembras-te que adorávamos amoras de árvore? Esmagávamo-las entre os dedos, o sumo que escorria pelos braços era o nosso sangue, enquanto fingíamos estar feridos. Divertíamo-nos a lamber aquele líquido doce que nos manchava os braços e a cara.

Distraída, nesse dia, ria e corria atrás de um gato. Assustaste-me quando gritaste:
- Pára! Não é assim que se faz. O gato não tem culpa que estejas zangada! – disseste.
- Zangada, eu? Estou apenas a aprender como se trepa uma árvore. Os gatos fazem-no melhor que ninguém – respondi, quase sem fôlego.
- Não tens o direito de os assustar, para aprender o que nunca irás conseguir.
- Quem os assusta és tu, a gritares dessa forma estúpida!
- Não estou a gritar e prefiro aprender a percorrer telhados.
- Telhados? Bô! Catano! O garoto não está bom da cabeça. Pr´a quê isso?
- Para ver se as estrelas caiem. Gostava de ter uma na gaiola que fiz para o meu grilo.
- Eu prefiro amoras. São o nosso sangue.
- És parva! Aquilo não é sangue! É sumo de amora.
- Eu sei! Vê-se mesmo que nunca brincaste aos feridos, com sumo de amora.
- E achas que são os gatos que te vão ensinar a chegar ao alto da amoreira?
- Talvez! Hoje não consegui, porque o assustaste com os teus berros. Devem ter-se ouvido até ao outro lado da aldeia. Os gatos acham-nos capazes de atirar pedrras, quando nos enfurecemos.
- Eu não peguei em pedras!
- Pois não. Mas eles sabem que o podemos fazer quando nos enfurecemos. E o mais grave é que as podemos atirar e magoá-los. Não entendes que precisam de tempo para confiarem nos humanos?
- Para confiarem em nós? Como é que isso se faz?
- Tens que deixar que o gato te veja várias vezes. Podes levar-lhe umas espinhas ou leite, para mostrares que gostas dele e para que ele comece a gostar de ti. Percebes?
- Não sei se percebo. Só depois de tentar. Deve ser complicado para um animal aprender a confiar em alguém que não fala como eles.
- Olha, eu prefiro vê-los ao longe. Um dia quero ter vida de gato.
- Oh! Sabes lá o que dizes!

Desapareceste, distraído, pensando na estratégia a adoptar para conquistar a confiança daqueles seres independentes, que não compreendias.
(Fase experimental de um conto, que está a ficar uma grande merda... Continua...)
Ana Teresa Pinto Lousada

segunda-feira, junho 09, 2008

Todo o verbo pressupõe um início

Eis que chegou o dia em que matei Maria Joana. Algo de imperceptível me sussurrou ao ouvido antes de morrer. Pedi-lhe que repetisse o que me era dito. Uma vez mais não compreendi, olhei-a nos olhos, aguardando o termo da sua vida, e entre nós estabeleceu-se um pacto. A dor de a ter assassinado foi substituída por uma estranha sensação de harmonia. O brilho do seu olhar percorreu-me, com um arrepio, encadeou-me, quase juro que a vi sorrir um segundo após o último impulso de vida. Inspirei longamente o ar gélido que se fez sentir, enquanto reflectia sobre a melhor forma de fazer desaparecer aquele corpo ainda morno. Contemplei-lhe o rosto até adormecer ao seu lado. Impossível nunca me ter apercebido da sua perfeição. O ódio cegou-me até à mais profunda existência do meu ser.

Matei-te, Joana e invade-me uma pacificidade inexplicável. O ódio foi o meu único sentimento verdadeiro. Depositei-o em ti, como se fosses a responsável por toda a minha revolta interior face ao universo. Lembras-te de que julgávamos ser capazes de afastar trevas? A escuridão venceu-nos, perdemo-nos um do outro, a partir do momento em que deixámos escapar sonhos e sorrisos. Adormeço em teus braços já mortos e, uma vez mais, deixo-te habitar em mim.

Sonho contigo. Regresso à minha infância e assola-me aquele sentimento, como quando me via perante um gato selvagem. Chamava-o carinhosamente, esforçava-me por convencê-lo sobre o meu intuito em lhe fazer festinhas, ao invés de cruéis judiarias. Passo a passo tentava aproximar-se, muito devagarinho esticava o meu braço, o mais que podia, com a esperança de não o assustar. Por mais cuidadoso que fosse, os bichos acabavam sempre por fugir e em mim instalava-se o sentimento de frustração, por não ter conseguido comunicar com aqueles seres rebeldes. Na minha mente surgiam as primeiras dúvidas: “se sou tão cuidadoso porque me foge aquele gato”? Canalizei este sentimento na relação com os meus semelhantes e, progressivamente, cultivei o ódio por todos aqueles que de mim se afastavam. Encontrei-te num dia em que tentavas aproximar de um gato e logo me identifiquei.

Porque é que te odiei, Maria Joana? Sabes que todo o verbo pressupõe um início. A génese do verbo Odiar está na incapacidade de interagir com felinos.
(continua...)
Ana Teresa Pinto Lousada

quarta-feira, junho 04, 2008

Uma história - O princípio é o fim

Não sei como iniciar esta história. Impossível prever a sua introdução, desenvolvimento e conclusão. Impossível definir número de caracteres e páginas. É uma história escrita ao ritmo do improviso e inspiração. Começo então por dizer que Maria Joana era meu nome de guerra, até ser ferida mortalmente por dois tiros que me furaram os miolos. Ou terá sido um pouco mais abaixo, em plena cana do nariz? Não sei! Fiquei um pouco confusa com o sucedido. Foi tudo tão rápido e frio, quase não senti dor! De qualquer modo, antes de sentir o cheiro e a leveza da morte sussurrei a quem me assassinou: “por respeito à nossa inimizade eterna, pela dignidade que me resta, apelo que me deixes reencarnar em ti para contar ao universo aquela que foi a minha história. Prometo que não me vingarei, honrarei todo o ódio que de nós se apoderou. Contarei o que fui e logo depois me elevarei até ao buraco negro”. Assinámos um pacto, mediante o contacto visual, dei o meu último suspiro de vida e alívio, fechei os olhos e reencarnei aquele que em vida me odiou com toda a sua dignidade. Quero com isto dizer que este indivíduo onde parasito temporariamente, no fundo era meu único amigo, porque sempre me enfrentou com a sua verdade, nunca me apunhalou pelas costas e avisou-me que um dia me mataria. Eu sabia que ele o conseguiria. Mesmo assim lutei pelo meu nome.

Maria Joana! Era este o meu nome de guerra! E assim finaliza minha história.

No princípio era o verbo Nascer. Nasci numa aldeia de Trás-os-Montes em 1939, numa família numerosa. Meus pais adoravam os seus filhos e discutiam muito entre si. Contudo, sabiam que não tinham mais nada, para além do seu casamento e dos putos barulhentos que precisavam de criar. Apesar de tudo, éramos felizes à nossa maneira. Brincávamos tanto, quanto trabalhávamos na terra e ainda íamos à escola. Sim! Conseguimos ir à escola e todos fizemos o exame da quarta classe com sucesso. Adorávamos cantar e dançar. O meu irmão mais velho tocava cavaquinho e sempre que havia bailarico na aldeia, eu dançava como criança feiticeira e ele tocava como um duende encantado. Vivíamos num mundo alegre, onde não passámos necessidade porque não éramos supérfluos. Produzíamos o que comíamos. O carro de mercearia passava uma vez por semana e só nessa altura podíamos aceder a outros géneros alimentares, como arroz, sardinhas e polvo. Nem sempre adquiríamos esses bens, porque os bolsos frequentemente se encontravam vazios de tostões. E que nos importavam os bolsos rotos, se tínhamos a alma preenchida? Criámo-nos e os bens essenciais não nos faltaram. Cultivávamos batatas, milho, nabiças, cenouras, abóboras, cebolas e tínhamos árvores de frutos. Criávamos animais e fomos felizes, eu e os meus irmãos naquele pequeno mundo que nos parecia encantado!
Ana Teresa Pinto Lousada
(Vou esforçar-me por continuar a história. Amigos e visitantes, preciso das vossas opiniões. Obrigada!)

domingo, junho 01, 2008

Sou eu, a tua continuação!

A magnitude do meu ser é invencível! Sei que sou especial, porque sou guerreira enquanto vencedora de batalhas travadas com as trevas infestadas de monstros. Fui ponte de ligação entre a vida e indivíduos perto do abismo. Sou emotiva e a encarnação da dor. Não sou líder, mas diferencio-me. Sou consciente e os sonhos são o meu refúgio.

O meu êxtase está na empatia com todos os elementos da natureza, como o vento que me acaricia, afastando todos os meus receios. Alegro-me com o movimento das árvores à minha passagem, que me incitam a invocar os meus queridos mortos. Aquele vento que se torna mais intenso indica-me a sua presença espiritual. Saúdam-me alegremente e eu digo-lhes que tive saudades; a minha avó “Ana” orgulha-se da sua descendência. Sou eu avó, a tua continuação! Estou aqui e quero dizer-te que lamento muito não nos termos cruzado nesta física existência. Gostaria de me ter familiarizado com teu rosto e teus costumes. Gostaria de ter sentido o teu cheiro de avó materna, de apreciar os teus cozinhados à lareira, de ter ido contigo para as hortas apreciar os teus cultivos e a criação dos teus animais. Gostaria de te ter feito sorrir com as minhas brincadeiras de criança e de te ter chamado “avó” carinhosamente. Gostaria que me tivesses visto correr alegremente atrás de pintainhos e de gatos fugidios. Gostaria de ter cantado contigo e de te ouvir contar histórias de família, ao calor da lareira. Sabes, a primeira vez que entrei na tua casa, que estava já em ruínas, invadida por silvas e bicharada, assustei-me com um morcego que por sua vez se assustou com a luz do dia e pensei em ti: como gostaria de te ver ali à minha espera! Não sei que idade teria, pouco mais de meia dúzia de anos. A minha mãe adora-te e eu gostaria de te venerar também. Conta-me às vezes que ias pelo monte fora chorar teus filhos ausentes. Sofreste! Gostaria de te ter abraçado por isso. Sei que naquele pequeno refúgio és tu que também me rodeias. Embalas-me na tua energia pacífica, que me alimenta a alma. Avó, quero viver! Ajudas-me?
Ana Teresa Pinto Lousada

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