sábado, maio 27, 2006

Uma Lição do Abismo

“Sobre uma bala dirijo-me ao meu deus, alguém criado pela minha própria ilusão. Gostaria de lhe dizer que estou no inferno e que grito todos os dias, talvez porque viva apenas a esperança de alguém me olhar. Não durmo, não consigo tirar tempo ao que me resta para conhecer os meus pensamentos, certezas que não tenho. Apenas sei que a morte vai surgir de repente e, a sorrir, oferecer-me paz. Desejaria rezar para sobreviver, mas sei que não basta fechar os olhos para fugir à própria tragédia. Afinal estou morto demais para poder morrer, acreditei ter força suficiente para não me asfixiar, apenas pude suspirar quando quis soltar um grito. Morri no instante em que pensei ter começado a viver, porque não era possível continuar vazio por dentro. Desconhecia (talvez) ter nascido por não viver, cortei-me e a felicidade foi a primeira coisa a sair de mim. Fiquei mais quente, sofrimento físico em vez de espiritual. Incerteza ou alucinação? A verdade é que ontem tentei ficar mais puro, mas continuei sujo, a dor não me deixa existir dentro do sonho que criei. Fui ao médico e afogo-me em antidepressivos, haxixe e álcool, não para saber quem sou, apenas para alcançar o mais depressa possível um futuro de incerteza. Desta vez não admito falhar, não como agora desejei matar-me se o meu futuro não for diferente, e ao mesmo tempo quero adiar para sempre esse instante supremo em que sairei do meu corpo odiado e ficarei a ver-me partir. Deve desprender-se de mim um olhar e um cheiro de morte. As pessoas com quem me dou talvez pressintam que o fim está próximo, por isso abraçam-me sempre como se da última vez se tratasse. O tempo passa depressa, o dia esvai-se dentro de mim, os primeiros traços de escuridão de há uns meses ocupam cada vez mais espaço. Na mais profunda solidão espero ser livre, desesperado e abandonado choro, não tenho forças para lutar por muito mais tempo.

(A morte é a minha vida)

Pode ter sido em vão o momento em que pedi ajuda, hoje parece-me apenas o adiar de alguma coisa inevitável. Apreciei os breves momentos em que surgiu alguém capaz de me dedicar uns minutos do seu tempo, na tentativa frustrada de explicar que eu não estava só no mundo. Passei a ter a convicção de que a minha tristeza também se abate sobre os outros, os tais que parecem ligados a mim por sentimentos que não conheço, aqueles que embora não me compreendem dedicam parte do seu tempo a olhar-me com atenção. Amam a infinidade das coisas, ainda acreditam na humanidade e talvez queiram ajudar a viver a minha pobre pessoa, por isso choram. Tenho de tornar claro que não desejo ser preocupação para ninguém, não quero que sofram por minha causa, gostaria apenas de calma neste corpo tão cansado. Invoco um sonho e deixo-me levar pela aparência, anseio por um destino e deixo-me morrer na sua subtileza. Tenho pouco tempo, muito pouco tempo para mudar o mundo, não chegam os minutos em que vivo para me abstrair da terra e vencer a inércia que me atormenta. Tudo o que quero é atingir a minha apoteose final, alcançar o meu zénite, mas não sei se serei capaz, ignoro se morrerei pelo caminho. Agradeço aos meus pais terem sabido tomar conta do meu corpo. A culpa de o detestar não é da sua responsabilidade. Tudo surgiu de repente. Em criança vivia os dias sem pensar, amparado pela minha mãe e pela minha avó. Lembro-me do meu pai, mas por certo a culpa não será dele. Os pais não sabem ensinar a viver o amor neste mundo a morrer, transmitem apenas a cegueira necessária à sobrevivência diária. Agradeço-lhes a escuridão que lançaram sobre mim até aos 18 anos. Todas as manhãs sinto as veias dos braços a querer explodir, por isso me corto. Apesar da minha raiva continuar a ser ninguém. Caminhos por entre os sonhos e procuro a serenidade, busco a ilusão de que este momento vai passar e vou surgir de novo, no espelho, sem vergonha de mim. Com os olhos vazios, passo algum tempo a sobrevoar o conhecimento da escuridão. Como uma criança nascida na chuva, condeno-me a ficar para sempre gelado por dentro. Apenas me interessa procurar o brilho da minha sepultura. Ouço-me mas não me escuto. Quero o isolamento, o medo da morte e a sua derrota, ao mesmo tempo o meu corpo e o meu espírito. De repente, num sonho, sou capaz de deslocar o sol e moldar-me em forma de pentagrama, depois abraço a lua, toco nos meus lábios e sangro a vida. Parto num beijo, esqueço por momentos a minha tortura e os meus espasmos de dor, renasço sem saber para quê. Fico à espera do recriar do sonho, talvez consiga permanecer acordado, afinal também estou ansioso por experimentar novas formas de vida. Quem sabe a minha queda não me deu força para continuar, quem sabe se estive no paraíso da solidão ou no limbo que precede a felicidade. Sei, por outro lado, que denunciei a minha dor, o medo foi capturado pelo pecado, a viagem eternizada pelas minhas lágrimas, aquilo que nunca esperei está neste momento a abraçar-me. Estou também consciente de que a minha existência ainda não foi apagada. Talvez uma insignificante dor me impeça de me arrastar, os meus olhos brilham um pouco mais, mas não posso libertar-me de pensamentos de morte. Preso a um caminho, seguindo sempre a mesma questão, anseio pelo fim do meu terrível aspecto. Tudo o que de sagrado existe, tudo o que de profano me abraça, é apenas amor sem dor, dor sem amor. Hipnotizado pelos olhos da escuridão, quero procurar a penumbra e conhecer o sonho da vida. A minha alma leva-me para demasiado longe, apodreço dentro do meu próprio caixão, o céu puro arde e une-se ao inferno. Um estranho circuito nasce e cobre a humanidade. Como é possível unir corpos e pocriar? Lançar ao mundo gerações criadas numa ilusão, tentar unir pessoas numa vertigem que as conduzirá à morte? Quem sou eu para mandar, tenho apenas 18 anos, não quero ditar regras, desejo apenas que me escutem um bocadinho. Oiçam: o que sinto realmente é fúria, raiva por um demónio (ou deus?) que destrói e treme com as suas próprias palavras. Um vento forte enche os meus olhos de um pó de destruição, podem estar certos de que não desistirei de me libertar desta decadência em que me encontro. Tenho pena que me ouçam gritar e pensem que são suspiros, vejo o meu funeral e tu estás lá, toda de negro com um cachecol branco a esvoaçar, podes observar a minha pose finalmente aprontada para a imortalidade, o meu olhar ainda pergunta o porquê do teu olhar gélido. Caio no abismo de alguém morto, por dentro ainda não sinto a revolução que está prestes a começar. Quero arrastar-me pela dor daquilo que considero imortal, um infinito fragmento que pressinto bem no interior de mim, por isso as lágrimas caem num corpo flagelado por tantos cortes. Nem sempre desisti. Durante algum tempo denunciei a minha revolta, gritei liberdade, mostrei alguns caminhos que pensava ter descoberto, mas a realidade à minha volta não se alterou. Gostava que tivessem percebido que naqueles momentos eu queria uma solução para os meus problemas, uma resposta para o meu mau momento. Eu estava lá. Agora é tarde, mas continuo a desejar mais clemência face ao meu modo de ser. Posso não brilhar durante o dia, talvez consiga que não me ouçam à noite, mas permaneço no mesmo sítio. Não devo nada a ninguém, lamento apenas que não tenham entendido o abismo em que mergulhei. Questiono-me se vou ser amado, por um dia que seja, se alguém sentirá a minha falta. Sei, contudo, que nada se inventa, nada se altera. Apenas poderei chorar mais uma lágrima se notar o esboço de um abraço, se pressentir um rosto que se volta quando passo. Tal não acontecerá, por isso vou continuar o sofrimento, a perda desenhada na eternidade. Quero ficar naquele lugar indefinido onde o conhecimento busca novos horizontes, naquele instante em que o pôr do sol parece exigir ao mar uma nova maré. Levanto a minha sombra antes de mim, atravesso o tempo e deixo o meu rasto intacto, vou tentar que me procurem, vou deixar-me iludir pelo orgulho que me resta. Alguém me pode explicar o fim? Alguém sobrevive à própria morte? Alguém voou até ao infinito? Quero conhecer tudo. Corto os braços para saber o limite, para ter a certeza de que não é engano a raiva que sinto, nem miragem o local onde o meu corpo habita. Anseio mergulhar num mundo onde nada de errado irei fazer, num universo onde nada de contraditório me fará sofrer. Não sei se conseguirei. Apesar de me agradar morrer não tenho forças para me matar, não tenho capacidade para vencer a próxima luta, não sei como agir quando confrontado com a possível derrota. Por isso volto sempre ao mesmo assunto, nem só por um momento me concentro noutro tema. Por isso me obrigo a ficar com frio, apenas com as minhas mãos como agasalho. Não quero continuar a existir por impulsos, não mais pretendo desejar aquilo que desejo, não mais poderei existir na minha existência. Quero que seja eterna esta subtil cumplicidade com a magia, oxalá permaneça em mim esta profunda crença na paz da minha morte. Não sou ingrato, por isso não quero abandonar de repente quem ainda me abraça, nem sou capaz de submeter alguém ao hipotético caos.
Como pode o eterno ser fugaz? Como me posso tornar a causa da minha existência? Apenas tenho a certeza que não poderei continuar por muito tempo. Embora sem forças para acabar com a vida, sei que se poderá tornar inevitável o destino assinado por mim. O meu grito por liberdade não tocou ninguém por dentro. Sinto-me a um pequeno passo da imortalidade, um simples corte e o sangue escorre, a dor da minha alma ir-se-á embora muito lentamente. As feridas dos meus braços doem, mas dão-me uma mudança de dor que espero que se perpetue. Estou só no infinito do tempo, existo para me consumir, espero apenas que o Inverno passe e se faça o degelo deste meu corpo. Como posso viver ajoelhado perante uma bala? Estou demasiado cego e mudo para morrer, demasiado morto para enfrentar a morte. Sou eu, a dor, a causa da existência, o ruído do coração a perder-se no meu peito. Mesmo que não sair desta imensidão, a memória não se há-de apagar. Morto já devo estar, porque não consigo fazer com que acreditem que escolhi o meu trilho final. Violento é o meu acordar, os cortes são a minha salvação momentânea. Talvez uma simples promessa de alguém que me convença a ficar aqui. Se a escutar em algum momento, tentarei que a noite não me rasgue o coração. Pode ser que então sinta ao longe o olhar daqueles que querem que eu sobreviva. Mortal criatura, começa aquilo que deixaste por fazer, estás morto. O sol falta-te, a terra aspira-te, corta-te e vence a dor que te provocas! Desprezível mortal incapaz de combater, sem teres coragem para mudar o mundo e acabar com a tua vida! Deslizas sem admitir que tens asas para voar, matas-te a tentar viver. No fundo, não olhas para ti, guardas a dor com saudade, escondes as lágrimas com espasmos que abalam o teu corpo odiado. Não mudarás o desejo de não voltar a acontecer, não determinarás o caminho que irás seguir. Acreditem ou não naquilo que choras, não te compreenderão! Sinto o corpo a decair e a alma a rebentar. Consigo esculpir o falecimento do meu abandonado ser, ao mesmo tempo que sou capaz de desenhar a minha salvação. Vejo-te no dia seguinte ao meu funeral. Agora estás frente ao espelho com aquelas calças justas que te encorajei a usar, estou a olhar-te com ternura, mas afastas-te e é como se não me conhecesses, mergulho outra vez na minha escuridão. Morto, o sol desaparece, a chuva cai, as memórias afogam-me. Sufoco só por saber que não conseguirei sobreviver, nem eu nem ninguém sabe que gostaria de ser moldado por um sorriso, que desejo salvar-me deste caos. Fúria ou raiva entorpecidos ao longo de anos, fome absoluta, quero finalmente abraçar a minha morte e a minha vida. Quero desaparecer e ao mesmo tempo começar com força um novo destino. (…) Desejo a mudança, uma ansiada reacção, um rumo que tarda em definir-se, não posso continuar a esconder o que me rodeia com suspiros incompreensíveis para os outros. Deixarei alguém em lágrimas, talvez a minha mãe fique abandonada num abismo. Sem asas para se poder salvar. Tenho pena de causar sofrimento, agora ou mais tarde terei de enfrentar a morte, a vida, a solução, escolher um definitivo trilho a perseguir, não suporto mais séculos de espera por uma vitória, tortuosos momentos sem prazer. Consigo sem esforço esculpir a minha queda. Talvez me sinta amado como nunca o fui. Quando imagino beijar os meus lábios e poder finalmente amar-me também, quando desejo fazer parte de todos os sorrisos e secar todas as lágrimas, o meu corpo fica limitado à dor que afinal me abraça e sei que não posso continuar a hesitar. (…) O silêncio tomou conta de mim. Por isso me detesto e me mutilo. Se soubesse como reagir à indecisão, se ousasse enfrentar o ódio por mim mesmo… mas o meu silêncio desespera-me, submeto-me a tanto, às vezes deixo criar tanta ilusão, deixo o colapso aparecer e tomar conta deste corpo… Como é possível alguém ter amado e agora ganhar ódio, tratam-me como lixo sem se dar conta, vejo-me agora como um despojo do mundo, ser solitário imobilizado pela tentação. (…) Agora sinto repulsa, numa simples metamorfose a minha cara já não está triste e a raiva surge em toda a força. Para quem um dia sobreviveu através do amor que por mim sentia, não posso compreender como hoje deseja tanto a morte dentro do meu ser. Amigos, preciso que, antes que algo aconteça, me demonstrem que existem, necessito de um pequeno sinal vosso, oxalá cheguem antes de eu fechar os olhos, não tardem em fazer-se sentir, espero tê-los no meu coração a lutar contra a minha dor. Quero que me limpem as lágrimas, para me ser permitido continuar a testemunhas a minha queda e a minha angústia. Disse que amava e talvez não sentisse o amor, os meus olhos não souberam olhar-me, no fundo queimei-me as coisas boas que ainda existem em mim. Digo-o sem reservas, este nunca foi o meu mundo, a minha casa não é o meu refúgio. Nasci para morrer cedo, estou só num vale, olho em volta e não distingo. Se morrer onde não estiver ninguém, os espasmos deixarão de existir e serei esquecido. Se morrer matando-me, se me abraçar aniquilando-me, se me surgir desprezando-me, se tentar nascer outra vez, não terei piedade pelos meus sentimentos, tudo irei perdoar, do nada irei recomeçar, nada irá mudar. Tenho a certeza de que posso desenhar a minha salvação, mas morro em cada vez que acordo, de que serve querer amar-me, o meu falecimento é apenas um ânsia sobre o meu direito de morrer. Estou só. Admito que por vezes quero sobreviver, adiarei a minha morte enquanto pensar que ainda existe alguém capaz de me amar, mas estou tão cansado de nada obter que não lutarei por muito tempo. Lutar para nunca mais alcançar o caos à minha volta, será que isto é apenas um sonho ou o simples desejo de acordar? Assassino convicto, negro ser que não admite ordens, de que estás à espera? Não te iludas, a salvação que às vezes desejas não chegará tão cedo!”
Daniel Sampaio: "Lições do Abismo", 2002

domingo, maio 21, 2006

Gumes (4)


"Estou farto disto, não posso mais, todos os dias passam iguais. Como um fantasma com escorbuto corro a cidade na busca de um xuto, speed ou heroa, coca ou morfina, tudo me serve como vacina desde que traga a santa narcotina. Furam-me os ossos, caem-me os dentes, reflicto ao espelho sinais indigentes, mas o pavor é da ressaca e da dor! Já desvairado com tanta volta, sempre sem ver poda ou recolta, fico em suores, vem-me a carência, sinto-lhe a mão sem qualquer clemência: pica-me as pernas, prende-me as costas, fere-me os tímpanos em dores expostas no rito ansioso do coçar das crostas. Não posso mais, tudo o que eu quero é ver-me livre deste ruim desespero, um caldo tal que seja um ponto final."
Adolfo Luxúria Canibal/Mão Morta

quinta-feira, maio 18, 2006

Respirar livremente este nosso ar poluído

O ar torna-se puro quando o respiramos livremente. Mas na tua frente é visível aquela partícula poluente que quase te sufoca. Sou como tu, gente aglomerada numa ilha onde o ar puro rareia e nos faz perder os sentidos: não vejo, não ouço, não saboreio, não cheiro, não tacteio, logo não sinto.

Assim se sucede a metamorfose de um ser humano/pedra, alternativa única de sobrevivência perante a obrigatoriedade de respirar livremente este nosso ar poluído.
Ana Teresa P. Lousada (Natura)

sábado, maio 06, 2006

Ser Imperfeito

Sabes que a perfeição é uma ilusão de óptica mental. Nada se perde, tudo se transforma na continuidade de uma existência imperfeita.

Sente-se a dor que atravessa uma alma que anseia trocar o sonho pelo ser perfeito inexistente. A dor não deixa acomodar e relembra utopias seculares. Contudo, o teu ser não desiste da procura porque nele permanece a tua essência. Abafas teus gritos de dor, mas jamais terminarás a tua luta.

A imperfeição da tua alma mantém teu ser vivo!
Ana Teresa P. Lousada (Natura)

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