sexta-feira, abril 28, 2006

Encostei-me

"Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,~
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos — Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro."

Álvaro Campos
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

terça-feira, abril 18, 2006

A Páscoa, o Coelho e Jesus Cristo

Em tempo de Páscoa obviamente que se recebem alguns e-mails alusivos a esta época. Assim, não podia deixar de aqui editar um dos textos mais engraçados que recebi:

"- Pai, o que é a Páscoa?
- Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!
- Igual ao Natal?
- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.
- Ressurreição?
- É, ressurreição. Maria, vem cá!
- Sim?
- Explica a esta criança o que é ressurreição para eu poder ler o meu jornal descansado.
- Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendido?
- Mais ou menos... Mãe, Jesus era um coelho?
- Que é isso menino? Não me digas uma coisa destas! Coelho! Jesus Cristo é o Pai do Céu! Nem parece que este menino foi baptizado! Jorge, este menino não pode crescer assim, sem ir à missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensaste se ele diz uma asneira destas na escola? Deus me perdoe! Amanhã vou matricular esta criança na catequese!
- Mãe, mas o Pai do Céu não é Deus?
- É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Vai estudar isso na catequese. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
- O Espírito Santo também é Deus?
- É sim.
- E Fátima?
- Sacrilégio!!!
- É por isso que na Trindade fica o Espírito Santo?
- Não é o Banco Espírito Santo que fica na Trindade, meu filho. É o Espírito Santo de Deus. É uma coisa muito complicada, nem a mãe entende muito bem, para falar a verdade nem ninguém, nem quem inventou esta asneira a compreende. Mas se perguntares à catequista ela explica muito bem!
- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
- Eu sei lá! É uma tradição. É igual ao Pai Natal, só que em vez de presentes, ele traz ovinhos.
- O coelho põe ovos?
- Chega! Deixa-me ir fazer o almoço que eu não aguento mais!
- Pai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?
- Era, era melhor, ou então peru.
- Pai, Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro, não é? Que dia que ele morreu?
- Isso eu sei: na sexta-feira santa.
- Que dia e que mês?
- Sabes que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no sábado de aleluia.
- Um dia depois portanto!
- Não, filho! Três dias!
- Então morreu na quarta-feira.
- Não! Morreu na sexta-feira santa... ou terá sido na quarta-feira de cinzas? Ah, miúdo, já me confundiste! Morreu na sexta-feira e ressuscitou no sábado, três dias depois! Como!?!? Como!?!? Pergunta à tua professora da catequese!
- Pai, então por que amarraram um monte de bonecos de pano na rua?
- É que hoje é sábado de aleluia, e a aldeia vai fingir que vai bater em Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.
- O Judas traiu Jesus no sábado?
- Claro que não! Se ele morreu na sexta!!!
- Então por que eles não lhe batem no dia certo?
- É, boa pergunta.
- Pai, qual era o sobrenome de Jesus?
- Cristo. Jesus Cristo.
- Só?
- Que eu saiba sim. Porquê?
- Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele tinha no apelido Coelho. Só assim esta coisa do coelho da Páscoa faz sentido, não achas?
- Coitada!
- Coitada de quem?
- Da tua professora da catequese!!!"
Anónimo

terça-feira, abril 11, 2006

Liberdade ausente

Nem Deus ouviu meu desejo antes de me transformar em vida. Assim seria o princípio da minha liberdade. Sou o que me impõem ser mesmo antes de nascer… as grades da minha vida estarão sempre presentes e farão questão de serem lembradas sempre, até à hora da minha morte…

Ana Teresa P. Lousada (Natura)

quinta-feira, abril 06, 2006

Sem Abrigo Meu Coração


"Certa noite lentamente, chorei o nosso amor perdido, aconteceu ao acaso, estava tão triste como um cartão abandonado na esquina onde tudo falta e decidi passear nos confins da cidade interior a que chamamos memória. Foi aí que tudo começou, algures no beco infecto e sem luz, na rua mais sórdida da minha alma, reconheci o Sem Abrigo; meu coração. O seu olhar baço, carregado da constante companhia das insónias, exigia o brilho securizante de quem se sabe ligado aos afectos, tudo nele era vontade de enorme excesso e em tudo aparentava extrema falta, era a questão mais viva de sempre.

Para os que nada sabem dessa sucessão de acontecimentos que nos levam embalados pela ladeira, para os tresloucados meandros da psicose e do sofrimento, permito-me recordar que no bosque impenetrável de tais domínios, todas as perguntas são árvores e as escassas respostas, breves clareiras iluminadas pela presença do instante. Perguntei-lhe se desejava pernoitar num albergue, lá podia tomar um banho, forrar o saco do estômago e repousar em lençóis, podia explicar o seu «caso» ao técnico de serviço e iniciar todo um processo de recuperação. Mas o Sem Abrigo; meu coração, nem resposta deu, limitou-se a rosnar baixinho incompreensíveis imprecações pelo incómodo causado, levantou-se e foi dali, não queria ser compreendido por um estranho, recusava com firmeza qualquer tipo de socorro.

Fiquei tão aterrorizado com o sucedido que saí de mim mesmo e vim escrever-te esta carta, como quem bate à porta de Deus com três secas pancadas de medo."

Cuilherme Oliveira Costa
Técnico a desenvolver trabalho junto da população sem abrigo

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