segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Como esquecer? - Parte I

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente, como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa, como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já não está lá?

As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?

Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!

É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. Dor de cabeça ou de coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso primeiro aceitar.

É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo, que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados, se tivessem apenas o peso que têm em si: isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padeceu. Muitas vezes só existe a agulha.

Dizem-nos para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguirmos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a cobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
(continua)
Miguel Esteves Cardoso

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

esqueço-me de tudo ,por isso escrevo.longe do terror ao sismo inesperado das estrelas,escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da minha morte.somente no esquecimento se encontrará a arte de viver...

20 fevereiro, 2006 22:00  
Anonymous Anónimo said...

como na canção
tenho arranhões por todo o meu braço,um por cada dia em que partiste.pois se algum dia houve uma razão essa razão foste tu...
titus

20 fevereiro, 2006 22:03  

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